João Irineu Medeiros, vice-presidente de assuntos regulatórios Stellantis: “A descarbonização precisa acontecer na cadeia inteira. Não só no escapamento do carro”

A OTM Editora promoverá no dia 29 de novembro, no Transamérica Expo, o Fórum de Transporte Sustentável. Na preparação para este dia inteiro de apresentações, debates e informações transformadas em conhecimento, fizemos uma série de entrevistas com os principais atores do setor sobre descarbonização

Por Fred Carvalho

Transporte Moderno – Como funcionam as metas de descarbonização? Não existe um destaque excessivo para as emissões automotivas? 

João Irineu Medeiros – A descarbonização precisa acontecer na cadeia inteira. Não só no escapamento do carro. Se ficar só avaliando o que sai do escapamento do carro, você vai ser levado a tomar decisões ou chegar a tirar conclusões parciais de um problema maior.

A gente começa falando do desafio que é mitigar, reduzir as emissões de CO2. Na Era Industrial, a temperatura média da Terra começou a sofrer aumento, seja na superfície da Terra ou dos oceanos. A Era Industrial é caracterizada pela queima de combustível fóssil, carvão mineral, óleo mineral e gás, ou seja, o aumento de consumo dessas fontes energéticas que são todas fósseis, que ocorre simultaneamente com esse aumento de temperatura da Terra. O CO2 é um gás inerte que não faz mal para saúde e está aqui presente no nosso ambiente, mas quando sobe para estratosfera causa uma perturbação na camada de ozônio e essa camada tem a função de filtrar os raios solares que estão chegando à Terra. Esses raios solares aquecem a Terra e a parte que não é necessária, é irradiada de volta para o espaço através de ondas de calor. Só que, quando irradia esse calor de volta para o espaço, causa uma perturbação na camada de ozônio. Uma parte dessa camada de ozônio impede que esse calor volte para o espaço e ele mantém esse calor entre a estratosfera e o nosso ambiente, gerando grande efeito estufa.

Transporte Moderno – Que gera tal abafamento e o aumento da temperatura de uma maneira trágica.

João Irineu Medeiros – O uso de combustível fóssil aumenta a emissão de CO2, que não é mitigado por nada porque não é renovável. Então se acumula na estratosfera, causa essa perturbação na camada de ozônio e temos o efeito estufa funcionando. De 1950 até 2020, nós aumentamos a quantidade de CO2 acumulado na atmosfera. Em 2020 estamos com 50 giga toneladas jogadas na atmosfera anualmente. Isso causa perturbação na camada de ozônio. Se a gente não controlar isso, continuar aumentando a quantidade de CO2, nós vamos ter um belo problema. Ou seja, a temperatura de hoje está em torno de um grau e meio aproximadamente acima da referência e ela vai chegar a quatro graus. Com isso, nós vamos ter um fenômeno na linha do Equador. Significa que teremos 365 dias do ano com uma região inabitável e, por consequência, 3 milhões de refugiados do clima em 2100. Claro que isso vai piorando conforme o tempo vai passando. Não acontece da noite para o dia. As pessoas que hoje moram nessa região não poderão mais habitá-la e terão que ir para o hemisfério Norte ou Sul.

As políticas atuais vão nos colocar numa situação em que a gente vai manter o status quo, vai continuar emitindo 50 gigas toneladas. Nós vamos mitigar só o excesso caso não tivesse política nenhuma. Nós precisamos fazer valer os compromissos da COP 21, 26 e 27 para trazer os 50 gigas toneladas para Net Zero. Só assim vamos conseguir manter aproximadamente um grau e meio de elevação da temperatura.

Os compromissos da COP vão estar juntos com essa política atual. São compromissos que as empresas precisam ter para atingir Net Zero. Mas não no escapamento do carro, no ciclo completo e é para todos os setores e não só o automotivo. Quem gera energia tem que participar do processo: regiões como China, Estados Unidos, Comunidade Europeia, Índia e Brasil. Selecionamos 5 grupos e a fonte é da Boston Consulting Group. A China tem 11 giga toneladas. Preste atenção: o total do mundo são 50 gigas toneladas. Estados Unidos 5.7 giga toneladas, a Comunidade Europeia 3.3, a Índia, surpreendentemente, é igual a Europa (levando em consideração que a população da Índia já passou a da China) e o Brasil, 1.4 giga toneladas.

Transporte Moderno – A impressão que fica quando Emmanuel Macron, presidente da França, e todo europeu fala é que nós emitimos a mesma poluição que a China. Nós somos tratados como o maior bandido do clima e a gente é exatamente o oposto.

João Irineu Medeiros – Ele deveria fazer a parte dele e depois falar da gente, mas falam do Brasil, para a gente reduzir e é um absurdo. A geração de energia sem transporte, energia para indústria, para aquecimento das casas é responsável por 76% para emissão de CO2 da China, 58% das emissões dos Estados Unidos e 59% para a Comunidade Europeia. E, no Brasil, a geração de energia é responsável somente por 17%. Comparado com outras regiões, é pequeno. Tanto na proporção quanto no valor final absoluto é o menor valor dos cinco.

Em transporte aqui no Brasil nós estamos em quarto lugar. É importante a gente observar que veículos de passageiros e comerciais leves são responsáveis por 41% dessas emissões dos 13% deste segmento. Caminhões e ônibus são responsáveis por 56%. Uma frota de 40 e tantos milhões de carros de passeio comparada com 2 milhões de caminhões e ônibus. Então são 5%, mas são responsáveis por 56% da emissão de CO2 da frota circulante total.

Transporte Moderno – Nós trabalhamos para chegar nesses 13% através do Inovar Auto e Rota 2030 com redução do número de cilindros, injeção direta, turbo, start stop etc. Conseguimos chegar praticamente no estado da arte em termos de motores a combustão. Na hora em que a gente chega no estado da arte, as pessoas falam para jogar tudo fora e vamos colocar algo no lugar com consequências ainda não mensuráveis.

João Irineu Medeiros – Não precisa jogar tudo fora. Só para entender como o Brasil se posiciona em relação aos outros, já existe uma pressão muito forte para mexer na frota de veículos, só que na área de energia. Cadê o regulamento para reduzir a emissão de energia nas outras regiões?

Transporte Moderno – Carvão sendo queimado, óleo combustível…

João Irineu Medeiros – Antes de pegar tudo e transformar em bateria, em uma solução única, a gente abre um leque de opções. Dependendo da aplicação você pode ter um carro 100% elétrico ou um híbrido ou 100% etanol e podemos brincar com mix. Por que brincar com mix? Porque precisamos de soluções que sejam equilibradas do ponto de vista econômico, ambiental e social. Se eu pegar tudo hoje e jogar no lixo, será um erro gravíssimo do ponto de vista social e econômico, como desemprego, falta de dinheiro para fábrica nova ou fábrica de baterias que custa 2 bilhões de dólares. Não dá para fazer esse giro de chave de forma bruta. É preciso fazer de forma gradual, mas é necessário dividir o dever de casa entre os vários setores. Vamos olhar para a agropecuária aqui no Brasil: tem um rebanho bovino que é o maior do mundo, impactante. Quais são as ações que estão sendo feitas aqui? Sai CH4 pela boca, pela frente e por trás. O processo de combinação gera metano, então precisamos trabalhar com todos os setores: energia, transporte, agropecuária, indústria, etc. Da mesma forma que os outros tem um dever de casa muito grande para fazer porque a matriz energética deles não é renovável.

Fizemos o ciclo de vida do automóvel. Ele começa quando retiramos os elementos da natureza como o ferro, a bauxita e tudo aquilo que serve para preparação da matéria-prima que pode ser o plástico, alumínio ou aço e depois, com essa matéria-prima, fazemos os componentes do carro.

Um veículo do segmento B tem 3.500 componentes e a maior parte é fabricada fora da fábrica, em um parque de 600 fornecedores. Depois você precisa levar essas peças para dentro da planta, onde tem logística, emissão de CO2 para transportar essas peças e, por fim, a montagem do veículo. Aí entra na nossa planta, dentro do nosso CNPJ.

No conceito do berço ao túmulo, esse CO2 em todos os pontos é todo de nossa responsabilidade. Está tudo no ciclo de vida do nosso produto. Depois que a gente faz o carro, distribui para o concessionário e vende o carro, tem o uso do carro, é onde eu queimo combustível, o que chamamos do tanque a roda. Qualquer que seja ele, pode ser eletricidade, pode ser combustível fóssil (gasolina, gás natural ou diesel) ou biocombustível (etanol, biometano, diesel verde etc). Aqui tenho o processo de fabricação da eletricidade, do combustível fóssil e do biocombustível… todos eles têm emissão de CO2 de alguma forma.

Depois que uso e abasteço o carro, tenho o fim de vida do carro (End of Life). Tudo isso tem emissão de CO2. Essa parte toda é de nossa responsabilidade e tem responsabilidade do fabricante do combustível. A vantagem do biocombustível é que todo etanol que sai do escapamento do carro – quando você faz análise só do escapamento – é capturado pela plantação da próxima safra da cana-de-açúcar, vai produzir o etanol para o próximo ano. Então a frota que está rodando hoje, está emitindo CO2 com etanol 100% e é inteiramente capturado pela plantação da cana-de-açúcar.

Transporte Moderno – Neutraliza e fica menos comprometedor que o carro elétrico.

João Irineu Medeiros – Por que ele não é 100% renovável? Ele não neutraliza tudo porque a máquina agrícola é a diesel, colheitadeira, trator, fertilizante e processo de fabricação e transporte do etanol para os postos de gasolina é com diesel. Esse não consigo neutralizar.

Transporte Moderno – Se você for para Presidente Prudente você neutraliza. Na entrevista com Christopher Podgorski, CEO da Scania Latin América, ele contou uma história de um grupo que criou a famosa ilha energética na região de Presidente Prudente, interior de SP. Em uma conversa com Antônio Megale, ex-diretor da Volkswagen bem como ex-presidente da Anfavea, ele contou também sobre o grupo investidor que tem revendas Volkswagen. Compraram uma fazenda e fizeram de uma maneira de aproveitar todos os rejeitos e descartes da produção. E, com isso, produzem biogás – utilizados nos caminhões da Scania – energia elétrica, fertilizantes etc. A energia eles vendem para a distribuidora da região. Ou seja, parece que a gente tem vários caminhos, poderiam até abrir postos de abastecimento de biogás para fortalecer mais rotas para as transportadoras que tenham caminhões a gás.

João Irineu Medeiros –  Há um caminho a ser percorrido antes de falar de caminhão elétrico. O biometano é uma alternativa interessante para essa turma. O melhor para fazer biometano é pegar as folhas da palha que ficam nos campos de cana-de-açúcar, pois elas são menos nobres do que o bagaço, que tem muito carbono nobre ainda para fazer etanol de segunda geração.

O fato é que existem oportunidades de transformar os 70% ou 80% renováveis da produção do etanol em algo na faixa de 90% a 95%, através dos usos dos subprodutos sendo bagaço, linhaça e tudo aquilo que é a borra que fica no filtro no processo de fabricação do etanol. Isso pode transformar o etanol em algo ainda mais renovável do que ele é hoje. 

Fizemos um raio-x entre um carro a combustão interna e outro 100% elétrico. São dois animais completamente diferentes. O que se salva aqui é a casca do carro, mas a plataforma do carro elétrico é outra. A bateria aqui está integrada na plataforma do carro.

No caso do motor a combustão, temos vários sistemas: refrigeração, escapamento, alimentação de combustível, filtros, suspensão do motor propulsor, resumindo, tenho uma série de coisas aqui e no dia que eu decidir sair desse animal e ir para o outro, jogo o projeto no lixo e começo tudo do zero.

Vou pegar boa parte da fábrica de ferramentais que tenho para fazer isso aqui, que pode representar 40% do custo do carro, e jogar no lixo. Colocarei no meu carro algo que custa a metade do preço do veículo, que é a bateria.

Então essa transição, se feita de forma abrupta, tem de ter uma preparação para pagar os pênaltis econômicos e sociais. Seguramente, do ponto de vista ambiental, aqui no Brasil você vai dar um salto positivo. Do ponto de vista econômico e social você cria um belo desafio, jogar as plantas fora e começar do zero. Uma fábrica de baterias custa centenas milhões de dólares e a gente não vai conseguir colocar uma fábrica aqui da noite para o dia. Não é uma passagem que a gente faz num país em desenvolvimento como o nosso rapidamente.

A pergunta é a seguinte: se o desafio é descarbonização, preciso ir direto para o elétrico?  Não necessariamente. O combustível fóssil ao ser produzido joga CO2 para a atmosfera e do transporte de combustível para o posto também. Tudo acumula na atmosfera causando uma perturbação na camada de ozônio. No biocombustível, tudo que sai do escapamento do carro eu consigo recuperar. Na plantação da cana-de-açúcar, o que fica na atmosfera é só aquilo que as máquinas a diesel e o transporte emitem.

No caso do fóssil, tudo se acumula na atmosfera e no biocombustível não porque a planta precisa fazer fotossíntese e capturar o CO2 do etanol, ou seja, quanto mais etanol produzir, mas CO2 para ela fazer fotossíntese. Quase um ciclo fechado. 

A eletricidade brasileira é predominantemente de fonte hídrica. A fonte hídrica tem geração de CO2? Tem. Ela não é zero porque uma grande represa acumula muito material orgânico vegetal e animal, vindo dos rios que alimentam a represa, e ficam em decomposição durante 30 ou 40 anos e vão emitindo CH4 e várias formas de carbono. Então, dentro do processo da geração de energia elétrica, mesmo sendo de fonte hídrica, que é a mais renovável que nós temos, a gente tem geração de CO2, pequena, mas tem.

Colocamos só uma referência para não esquecermos que a Europa, Estados Unidos e China medem a emissão do CO2 no escapamento do carro. Eles não consideram a parcela de emissão durante a fabricação da energia.

Transporte Moderno – Curiosamente, a turma que briga pelo elétrico.

João Irineu Medeiros – É a turma que emite mais para gerar energia e mais briga pelo elétrico porque não tem alternativa. Tem regulamentação para te obrigar a usar elétricos no transporte, mas não tem regulamentação para reduzir as emissões de CO2. Escrevo o regulamento para quem faz carro, mas não escrevo para quem produz energia. É como se eu criasse um carro para lavar roupa suja. A bateria é uma lavagem de energia suja, digamos assim, para determinadas regiões.

Transporte Moderno – O famoso nome “Greenwashing” pode ser utilizado. É mais pesado.

João Irineu Medeiros – Esses dias escutei sobre lavagem de dinheiro. A pessoa pega o dinheiro de uma fonte não confiável, lava e coloca em condições de ser usado. A mesma coisa acontece com a energia. Usam a energia suja da rede elétrica e limpam fazendo sair zero de CO2 no escapamento. Quem paga essa conta?

Transporte Moderno – E a questão das medições – tanque à roda ou do poço à roda – como vai ficar?[FC1] 

João Irineu Medeiros –  Avaliar só do tanque em diante é muito parcial e muito pontual. Gera desequilíbrio do ponto de vista social, econômico e ambiental porque você deixa de avaliar a maneira que o combustível – elétrico, gasolina, gás, etanol, biocombustível – foi produzido, quanto gerou de CO2 neste processo. Esse etanol renovável do carro usando E100 é 70% menor, então ele cai para 32 do poço à roda, levando em consideração esse ciclo completo. E o full battery é 28, praticamente um empate técnico, com a emissão de CO2 no conceito poço à roda, do bio mais o carro, a eletricidade mais o carro. Se tenho um etanol E100 que tem um valor do poço à roda muito próximo do Battery Electric Vehicle, por que eu tenho que fazer uma passagem drástica com tudo para o BEV sabendo que eu tenho um custo muito forte para esta mudança? Minha bateria está na faixa de mais de 10.000 euros, afora os custos de transporte, logística etc. Então a bateria deve estar 100 mil reais mais cara do que um carro a combustão, tendo que tirar subsídio do governo, tem que ser custo frio.

Tenho dois extremos: um em que não preciso investir montanhas de dinheiro para descarbonizar e outro em que preciso investir bastante. Em um país que está no hemisfério Sul em desenvolvimento, onde não há fábrica de bateria ainda e nem projeto do carro, e hoje produz milhões de veículos de combustão interna, por que preciso fazer essa transição de forma drástica? A proposta é fazer uma transição gradual.

Aquilo que prometemos lá atrás, nós fizemos. Melhoria dos motores através da família GSE, a nova família de motores aspirado e turbo, injeção direta com tudo que tem de bom e de melhor. Esses motores têm uma predisposição para hibridização.

Transporte Moderno – Você consegue melhorar o rendimento energético dele, certo?

João Irineu Medeiros – Água não queima, né? Está lá só ocupando espaço na câmara de combustão. Se eu tirar a água, consigo aumentar a eficiência. Por isso a gente fala que o compromisso da descarbonização tem que ser de todos os setores, não só da indústria que faz carro. Tem que ser do produtor de energia, produtor de etanol, produtor de gasolina… todos precisam dar sua contribuição.

Transporte Moderno – Os produtores do etanol precisam assumir as melhorias de um etanol de segunda geração. O aumento de produtividade é brutal. Afinal, o governo já bancou tudo que podia 40 anos atrás…

João Irineu Medeiros – Em 2021, nós colocamos em produção o motor turbo com injeção direta, com melhoria termodinâmica. Agora, com a predisposição que esses motores têm para hibridização, o próximo passo é a hibridização leve. Mas por que vamos fazer isso? Incentivar o uso do etanol melhorando os motores e acrescento a hibridização leve que te dá 10 a 20% de melhoria de consumo nos motores, mas te permite ainda fazer redução adicional das emissões dos poluentes. A gente tem sempre no motor de combustão interna monóxido de carbono, hidrocarboneto e óxidos de nitrogênio (NOx) e 80% dessas coisas acontecem na fase fria de funcionamento do motor.

Quando tenho uma hibridização leve, a gente permite que, usando motores elétricos para ajudar o motor de combustão interna na fase fria possa mitigar essas emissões também de poluentes, reduzir o consumo de combustível e a emissão de poluentes. Então, ou seja, essa hibridização leve é uma forma de você ter uma bateria Mild Hybrid, de baixa tensão de alimentação, então é uma solução mais barata. A bateria pequena é de 1 kWh e a de um carro BEV full electric é acima de 40 kWh, para te dar uma autonomia de 300 km. Assim, posso usar uma bateria pequena de lítio. O motor elétrico ajudará o motor de combustão que é um motor de 5 a 20 kW de potência.

Transporte Moderno Lembra um pouco aquele primeiro BMW que tinha um motorzinho de moto. 

João Irineu Medeiros –  Esse motor ajudará o de combustão em determinadas condições. O Brasil, por exemplo, é um país que tem sobe e desce e, durante as frenagens, o motor carregará a bateria e, durante as acelerações, o motor elétrico vai ajudar o motor de combustão, chegando de 7 a 20% de redução de consumo, emissão de CO2, consequentemente, e redução de emissão de poluentes na fase fria principalmente. Podemos espalhar esse carro por um segmento de entrada, B ou C, aumentar o volume e fazer uma escala para produzir a bateria e motor elétrico aqui no Brasil.

Transporte Moderno – Uma Moura da vida consegue fabricar uma bateria pequena?

João Irineu Medeiros –  Consegue. Você começa com a montagem pequena, a fazer a célula e depois monta a célula. São coisas que a gente consegue importar em menor quantidade uma vez que a bateria pequena precisa de uma quantidade menor para ser feita do que a grande.

Transporte Moderno – O Gábor János Déak, ex-presidente da Delphi, deu uma entrevista para o especial Carro do Futuro e disse: “Como engenheiro, me desagrada ter dois tipos de soluções para o mesmo carro, mas o híbrido é a única solução que a gente tem para ser a ponte para chegar no veículo elétrico lá na frente, na hora que tiver tudo resolvido.” Só que hoje quando se fala de elétrico, está se falando em “escrapear” tudo que tem funcionado, investimentos de bilhões de dólares e investir outros bilhões para construir tudo novo. O Besaliel Botelho, ex-CEO da Bosch, falou: “Nós não temos condições de fazer a bateria grande. A China hoje faz com perfeição porque está investindo para escalas gigantescas. Nós não teremos essa escala. Então vai sair muito mais caro.” Então, em termos de investimentos, você tem alguma ideia de quanto seria se a gente tentasse fazer tal coisa da eletrificação aqui?

João Irineu Medeiros – Nunca parei para fazer a conta do todo, mas há um artigo muito interessante da Tesla que fala ter investido 4 bilhões de dólares para fazer 500 mil baterias por ano. Nós produzimos muito mais que isso, cerca de 2 milhões de carros. Vamos precisar de mais de 4 bilhões para investir em baterias.

Fazendo uma análise mais qualitativa, é o reservatório de combustível mais caro que o homem já projetou na história da indústria automotiva. Não existe um reservatório de combustível ou de energia tão caro que a gente tenha projetado. Talvez um sistema de alimentação de combustível líquido custe 100 ou 200 euros e uma bateria dessa custa entre 10 a 15 mil euros. A bateria não é um problema. O problema é a descarbonização feita de forma equilibrada e sustentável, que tem que ser econômica, social e ambiental. Eu consigo vender 2 milhões de carros 100% elétricos amanhã aqui no Brasil?

Transporte Moderno – De jeito nenhum. Não há público consumidor para isso. Não temos renda per capita para isso.

João Irineu Medeiros – Custa 100 mil reais a mais um carro desse. Preciso fazer essa conta? Todos os números mostram que o crescimento percentual de mix de mercado da bateria vai chegar de 0,5% hoje a 10 ou 15% em 2030 por causa do custo.

Transporte Moderno – O mundo produz 24 milhões de elétricos por ano, de um total de 80 milhões veículos. Tal número de elétricos tem a China como produtora. Se você pegar 24 milhões, daqui a 8 anos teremos um número de baterias por ano extremamente elevado e com enormes dificuldades de ser escrapeado, pois é bem superior a milhões de unidades. Agora, se pegar milhões de unidades de bateria e tentar escrapear, você não consegue. É só multiplicar um milhão por 400 kg.

João Irineu Medeiros – É interessante ver como a Tesla fez. A fábrica de reciclagem é tão cara quanto uma fábrica de baterias. Eles montaram uma planta de reciclagem de bateria nos Estados Unidos, ou seja, capaz de retirar o lítio, magnésio, cobalto, níquel e outros elementos para evitar continuar tirando o material da natureza e tentar recuperar isso de forma economicamente viável. Não é o veículo 100% elétrico contra veículo X, Y ou Z, é que tipo de aplicação do veículo 100% elétrico vale a pena fazer para ser do ponto de vista econômico e social ser sustentável.

Por exemplo, se eu pegasse um veículo de uma operadora logística que roda 100 Km por dia numa grande cidade como São Paulo, fazendo entregas durante 10 horas do dia. Talvez nesse caso, um carro 100% elétrico seja interessante, pois ele carrega o carro de noite, não precisa de infraestrutura durante o dia, roda 80 a 100 Km do dia com toda a carga da bateria que ele tem, terá um custo de manutenção mais baixo porque energia elétrica é mais barata, além do desconto de IPVA e outros para usar veículo 100% elétrico. Talvez valha a pena.

Ele vai usar esse carro durante quatro ou cinco anos e depois vai vender porque essa bateria depois de 200 mil km rodados terá dificuldade de recarga, não vai conseguir recarregar a mesma quantidade de energia de quando era nova. Então você encontra o segundo uso para ela em estações de energia solar para armazenar a carga à noite e depois ficar para reciclagem.

O ciclo de vida da bateria vai precisar ter uma sequência economicamente viável e talvez você tenha para esse volume de carros essa alternativa, mas fazer um full electric para uma pessoa que usa o carro de 5 km a 10 km por dia, acho que ainda é inviável pelo investimento que essa pessoa vai fazer sem receber retorno. O Total Cost of Ownership (TCO) não vai pagar.

Transporte Moderno – Sabe quem briga muito por causa disso? O Sergio Habib, da JAC. Ele é o maior comerciante que tem hoje de furgões e caminhões leves para girar dentro da grande cidade. Chega consumidor lá dizendo que vai rodar 100 Km e ele fala que precisa ser no mínimo 180 Km por dia para que seja economicamente viável. Assim paga a prestação sem sentir, ou seja, deixa de gastar com diesel ou gasolina.

João Irineu Medeiros – Você já colocou um dado prático naquilo que era a minha ideia de alguns números que nós levantamos do mercado. Não é um elétrico contra o Mild, Hybrid ou etanol 100%. É aquilo que já falava em 2015. Nós temos um menu de tecnologias que nos faz sair da zona de conforto de um motor de combustão interna gasolina e diesel, em que você varia a cilindrada, e vai para um menu de tecnologias muito mais amplo e diversificado em que terá que redescobrir a melhor aplicação para cada tecnologia que tem na mão.

Então entra o TCO, a sustentabilidade, o fator volume e escala e vários aspectos da zona de conforto antiga para investigar cada tecnologia e entender como isso se encaixa melhor na realidade brasileira.

Transporte Moderno – As empresas, inclusive as transportadoras, estão dando passos importantes na descarbonização. A Solistica, uma grande distribuidora da Coca-Cola, instalou em todos os depósitos da empresa captação de energia fotovoltaica. Não é um processo só do veículo, é das fábricas, de repensar tudo que for possível. A Honda tem uma produção de energia eólica no Rio Grande do Sul, enquanto a Volkswagen tem mini hidroelétrica. Lógico, neste repensar estão os elétricos, gás, diesel verde.

João Irineu Medeiros – Todos os setores precisam participar do processo e todas as etapas do veículo precisam ser levadas em consideração. Um outro exemplo: o concessionário passa a ter energia limpa para operar seu negócio, para dar uma contribuição de mitigação do CO2 nesse processo. Nós, evidentemente, estamos trabalhando fortemente no Road Map de tecnologia, mas também tem ações para materiais verdes do carro, ações junto com os fornecedores para mitigar a emissão do CO2, principalmente no trecho até a porta da nossa fábrica que é responsável por 12% das emissões CO2 no ciclo de vida de um carro.

Na montagem de um veículo, 2% é a fabricação do carro, é a nossa linha de montagem, de fabricação, de prensas. 80% do ciclo é a queima do combustível durante 15 ou 20 anos rodando 300.000 km pelo ciclo de vida dele. E depois uma pequena parte fica no descarte do carro, manutenção, serviços, mas a maior parte está na produção das peças e transporte das peças para a fábrica.

Transporte Moderno – Por exemplo, na adoção no elétrico, você faz recuperação de energia na hora da frenagem e uma série de coisas. No híbrido, você pode fazer a mesma coisa?

João Irineu Medeiros – A bateria de lítio tem a capacidade de armazenar energia em grande quantidade. Essa é a diferença entre a bateria de lítio que temos no celular para uma de 12v de chumbo presente no carro. A bateria de 12v é para baixa corrente, baixa voltagem e circuito eletrônico e essa tem capacidade de rodar motor de 40 ou 50kW, conforme vai aumentando.

Transporte Moderno Ainda falta uma grande solução para os caminhões. O caminho seria o hidrogênio?

João Irineu Medeiros – Exatamente. Para o transporte público, a gente fala em hidrogênio, mas o hidrogênio verde tem uma dificuldade ainda de distribuição. Dependendo da aplicação pode-se ter uma tecnologia que se encaixa bem ali naquela aplicação. A gente leva a soja do interior do Mato Grosso e Goiás para o porto para exportar. São 1500 km aproximadamente. Eu posso instalar uma unidade de hidrogênio de um lado e do outro e fazer esse transporte com hidrogênio em vez de fazer com diesel. Posso fazer com gás natural ou hidrogênio verde, ou seja, preciso pensar do ponto A ao ponto B, que o caminhão fica para lá e para cá e, como tenho dificuldade de infraestrutura no meio do caminho, posso fazer 1.500 km com uma tecnologia x. Instalo uma unidade de fabricação do hidrogênio lá na região onde eu planto e colho a soja e outra no porto e fico alimentando esses caminhões durante todo o ano com combustível que produzo nas bases.

Transporte Moderno – E simplesmente suprimo isso das emissões.

João Irineu Medeiros – Exatamente. Célula de combustível acho que é uma solução país porque é um carro fuel cell em que a parte de trás desse carro coloquei um reformador de etanol para tirar o hidrogênio do etanol e isso tem que ser um movimento do país. É uma forma de enxergar como acelerar isso aqui para que em 2030 esteja pronto.

Transporte Moderno – Claudio Sahad, presidente do Sindipeças, passou uma informação interessante: “A descarbonização pode representar uma oportunidade de ouro para o setor automotivo. Se conseguir junto ao governo, poderemos atender uma frota mundial de quase 2 bilhões de veículos que precisarão de peças e componentes. A frota com combustão interna é gigantesca”.

João Irineu Medeiros – Então terei uma solução de terceiro mundo. Definimos isso da seguinte forma: nós temos o hemisfério Norte que tem uma tendência de seguir uma rota do ponto de vista tecnológico, passa pela Escandinávia, Noruega, boa parte da Europa, uma parte dos Estados Unidos, mas nem todos vão abandonar completamente o motor de combustão interno.

Nos Estados Unidos ainda vão existir lugares com motor de combustão interna. No Leste Europeu não acredito que vão conseguir migrar 100% para carro 100% elétrico. Então nós teremos que fazer coisas diferentes. Nós temos a grande oportunidade de sermos grandes fornecedores do sistema de aspiração e escapamento, do motor, da transmissão, da suspensão do motor propulsor etc. E respirar com a hibridização de forma sustentável durante um certo período até a gente ter que migrar para uma versão mais eficiente do ponto de vista econômico de um carro 100% elétrico. Na verdade, não necessariamente tem que ser 100% elétrico. Vai ter que ser um mix de 100% elétrico, mas aumentar de 0,5% para 10, 20, 30 ou 40%. Mas vai ter alguma coisa ainda de hibridização com o etanol que vai ser uma coisa sustentável.

Transporte Moderno – A Stellantis tem a vantagem de seu CEO, Carlos Tavares, já ter apostado falando que nosso cavalo é esse, não vamos jogar as coisas fora. Junto com ele tinha o ex-CEO da Volkswagen que deu uma entrevista dizendo que era impossível implantar quatro megas fábricas de bateria de carros no tempo que o board queria, mas quinze dias depois ele estava no olho da rua.

João Irineu Medeiros – Tem muita coisa que a gente não sabe e precisa estudar. O tema da bateria é um deles porque ela é 50% do custo do carro. Se olho aquele ciclo produtivo do berço ao túmulo em vez de emissão para produzir um carro a combustão com a emissão de CO2 que tem até a produção final do carro e olho a bateria do carro em seu processo de produção e todos seus componentes de montagem, ele é 50% maior em termos de emissão de CO2 do que um carro comum. A produção da bateria é responsável por aumentar o nível de emissão do CO2 das peças do veículo como um todo. Outro ponto a destacar: a frota de caminhões no Brasil é 5% da frota total de veículos circulantes, mas ela emite mais CO2 do que a frota de veículos de passeio e comerciais leves que é muito maior.

Transporte Moderno – É uma frota extremamente antiga, tem mais veículos euro zero que Euro 3 e 5.

João Irineu Medeiros – E esta frota antiga não tem legislação que obrigue a reduzir a emissão de CO2.

Transporte Moderno – Ainda existe um longo caminho a percorrer e muito a aprender.

João Irineu Medeiros – Passei 26 anos jogando CO2 na atmosfera e nos últimos 8 anos mitigando o CO2.

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